Nas últimas semanas, o Supremo Tribunal Federal (“STF”) e o Congresso Nacional avançaram nas discussões sobre a demarcação de terras indígenas, sendo a discussão popularmente denominada na mídia como “Marco Temporal Indígena”. Essa discussão pode trazer implicações em todo o território nacional relacionadas ao direito de propriedade, tanto em imóveis rurais, quanto urbanos, uma vez que esta demarcação se origina no histórico de posse indígena de terras em todo o território nacional.
Neste sentido, para entender os desdobramentos desta discussão e os cuidados que devem ser observados nas auditorias imobiliárias, importa contextualizar e demonstrar sua origem legal, a qual advém dos termos do art. 231 da Constituição Federal (“CF”) e de seus parágrafos, abaixo transcritos para melhor entendimento:
“Art.231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e aposse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalva do relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7ºNão se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.”
Pela leitura do artigo mencionado, é possível inferir o que segue: (i) em se verificando terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, cabe a união demarcá-la, por meio de procedimento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (“FUNAI”) (você pode verificar o procedimento aqui),por meio do qual é instituído patrimônio da união e o usufruto da terra pertencerá ao grupo indígena, sendo que os (ii) direitos sobre as terras são imprescritíveis, portanto, podem ser reivindicados em qualquer tempo e (iii) não caberia qualquer indenização em favor do ocupante de terra indígena, salvo benfeitorias úteis e necessárias.
Em consulta a base de dados da FUNAI, verifica-se que ela possui 736 terras indígenas em seus registros, representando 13,75% do território brasileiro e, além disso, existem cerca de490 reivindicações de povos indígenas em análise pela FUNAI. Os dados exatos das áreas já certificadas estão no sistema geoserver, o qual possui as coordenadas exatas dos locais e podem ser verificadas via Google Earth. Também é possível mediante contratação de profissional agrimensor confrontar esta base da FUNAI com as propriedades georreferenciadas pelo Sistema de Gestão Fundiária - SIGEF (base federal do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA de área georreferenciadas).
Feita esta contextualização, a discussão paira especificamente sobre o caput do art. 231 CF, pelo qual discutem o que seria o termo “terras que tradicionalmente ocupam” e, sobre isso, os estudiosos definiram duas teses para aferir a questão sendo: (1)Teoria do Indigenato e (2) Teoria do Fato Indígena ou Marco Temporal(baseada na PET 3.388 do STF).
· Teoria do Indigenato. Nesta primeira teoria, considera-se que os direitos dos indígenas são inatos à figurado índio e existem desde antes da constituição do estado brasileiro, consequentemente, as terras tradicionalmente ocupadas, seriam nesta tese, todas aquelas que teriam sido ocupadas antes da instituição do estado brasileiro, sendo um direito do indígena a posse delas, pois inatas à sua condição de índio, portanto, sem um marco temporal específico.
· Teoria do Fato Indígena ou Marco Temporal. Já na segunda teoria, para considerar uma terra tradicionalmente ocupada, define-se como marco temporal a data de 5 de outubro de 1988, a mesma data de promulgação da CF, sendo assim, caso o indígena estivesse em posse nesta data, teria direito a terra. Esta teoria já foi adotada pelo STF no julgamento do caso “Raposa Serra do Sol”, neste julgamento definiu-se duas questões sobre o direito indígena as terras (i) que para aferir o direito de um indígena, ele deveria ter a posse na data de promulgação da CF e (ii) mesmo sem aposse no marco, mas desde que não a tenha por conta de esbulho possessório permanente, tendo o índio retornado continuamente a terra com a intenção de tomar a posse, ficando caracterizado o esbulho renitente, bem como o direito do indígena a terra. Contudo, este precedente não tem força vinculante, nem mesmo caráter de repercussão geral e, por isso, o tema foi rediscutido no recentemente no Recurso Extraordinário nº. 1.017.365 (“RE”) em sede de repercussão geral fixando, portanto, a tese que deveria ser observada outros casos no judiciário.
Este RE foi julgado no dia21.09.23 e a repercussão geral fixada em 27.09.23 (link para acesso no portal do STF), na qual rejeitou a tese do Marco Temporal, sob o fundamento de que a posse indígena é instituto diferente da posse civil e a sua definição seria vinculada àquela constante do §1º do art. 231 da CF, portanto, sendo desnecessário marco temporal ou esbulho renitente/permanente. Contudo, caso EXISTA ocupação indígena ou renitente esbulho APÓS a promulgação da CF, o ocupante da área teria direito a indenização pelas benfeitorias úteis e necessárias, previsto no §6º do art. 231 da CF; (ii) caso NÃO EXISTA ocupação indígena ou renitente esbulho NA DATA da promulgação da CF, teria direito a indenização das benfeitorias úteis e necessárias, bem como, quando não fosse possível seu reassentamento, indenização no valor da terra nua.
Depois deste julgamento, namesma semana, o Senado Federal deu andamento na votação do Projeto de Lei2.903/2023 (“PL”), aprovando-o, o qual, em divergência com o STF, regulao art. 231 da CF e define as terras tradicionalmente ocupadas com base nateoria do Marco Temporal, trazendo também vários regramentos e modos decomprovação, conforme texto do projeto de lei neste link.Na sequência, o PL foi enviado para sanção do Presidente em regime de urgência,não tendo sido sancionado até a publicação desta.
Diante de todo este cenário, atualmente, portanto, a decisão do STF sobre o tema está produzindo efeitos, ou seja, pró Teoria do Indigenato. Entretanto, caso haja sanção do Presidente da PL, poderíamos ter uma discussão sobre a validade e eficácia desta lei.
Trazendo a discussão para o direito de propriedade, é nítido que a decisão do STF causa insegurança em qualquer proprietário, assim, para minimizar a insegurança e trazer um mínimo dimensionamento dos riscos aplicáveis, orientamos nossos clientes a confrontara base de dados da FUNAI com os georreferenciamento das áreas por meio de um agrimensor com o fim de identificar alguma terra indígena já demarcada nos limites da propriedade em análise ou se existem litígios próximos à área em análise.
Por fim, é essencial lembrar que as leis estão em constante evolução, e a aplicação delas pode variar de acordo com as circunstâncias individuais. Portanto, em caso de dúvidas, é recomendável que você busque aconselhamento de um advogado de confiança, o qual poderá fornecer orientação personalizada com base em sua situação específica.
Por Rafael Zanini, sócio do PMK Advogados.
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